Carbono: vozes excluídas

Carbono: vozes excluídas

Empresas privadas foram autorizadas pelo governo do Amazonas a gerar e vender créditos de carbono

Quando entramos nos limites da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro, é impossível não se admirar com a quantidade de lagos, praias, igarapés e igapós de águas escuras. O mosaico de 103 mil hectares de fauna e flora, nativas do interflúvio dos rios Negro e Solimões, forma uma terra pública preservada que atravessa os municípios amazonenses de Iranduba, Manacapuru e Novo Airão. Essa região do baixo rio Negro, plena de biodiversidade, é cobiçada pelo avanço do mercado de crédito de carbono na Amazônia. Podia ser uma boa notícia, mas os ribeirinhos da RDS não estão convencidos disso.

A cerca de 78 quilômetros de Manaus, a reserva abriga uma população de 600 ribeirinhos em 19 comunidades tradicionais. As RDS são um tipo de unidade de conservação que não impede a presença de moradores tradicionais. Mas estes, quase sempre, se preocupam com a preservação ambiental. Em agosto, a Amazônia Real percorreu a RDS do Rio Negro para conversar com quem vive nas comunidades. Eles afirmam ter sido excluídos da elaboração do edital e de acordos de carbono feitos pelo governo do Amazonas com empresas privadas.

“Eu ainda estou bem desinformada, só sei o que ouvi pela televisão”, comenta Marlene Alves da Costa, 65 anos, liderança comunitária e artesã. O tal mercado de carbono que chegou aos ouvidos de Marlene tem sido vendido como uma solução para resolver a crise ambiental e ecológica na Amazônia, que enfrenta o seu pior momento com a aceleração do desmatamento, das queimadas e da crise climática.

Impulsionada pela realização da COP 30 em Belém, no Pará, a discussão do mercado da ”economia verde” e da “bioeconomia” do crédito de carbono está longe de trazer segurança. Ao contrário, as populações locais, que são peça-chave para esse mecanismo de compensação ambiental funcionar, ainda têm muitas dúvidas.

A comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde a líder Marlene mora, é a maior da RDS do Rio Negro. Cerca de 85 famílias vivem às margens do Lago do Acajatuba, grande parte composta por aposentados, pescadores e agricultores que viviam ali antes da criação da reserva, em 2008. O lugar é conhecido pelo turismo ecológico, que mantém economicamente a maioria das comunidades. Turistas do Brasil e do mundo viajam para a RDS a fim de conhecer a Amazônia, os balneários e as pousadas do local.

Marlene confecciona bijuterias ao lado de 30 mulheres artesãs de outras comunidades. Também ajuda a vender os itens em sua loja. Liderança feminina à frente da economia criativa da reserva, a artesã desconhecia que entre março e abril o governo do Amazonas, por meio da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema), anunciou a aprovação de projetos de geração de créditos de carbono, na modalidade REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), em 21 Unidades de Conservação (UCs) estaduais, incluindo a RDS do Rio Negro.

O projeto REDD+ foi oficializado sob a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima com o objetivo de reduzir as emissões de gases de efeito estufa provenientes do desmatamento e da degradação das florestas. Esses projetos de crédito de carbono devem incentivar a conservação e o manejo sustentável das florestas, além do aumento dos estoques de carbono vegetal.

A execução dos projetos de carbono no Amazonas foi concedida para cinco empresas privadas, entre elas a Future Climate, antes conhecida como Future Carbon. Como intermediadoras, elas vão negociar a venda de créditos no mercado internacional e voluntário a partir de projetos de compensação ambientais realizados nas RDS do Rio Negro e do Juma, no município de Novo Aripuanã.

A realização do edital, lançado em junho de 2023 para contratar as empresas, é motivo de desconfiança dentro da RDS do Rio Negro. Lideranças e moradores garantem que não foram consultados sobre a escolha da empresa, o que viola os termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que exige consulta prévia, livre e informada para qualquer intervenção em territórios tradicionais.

Um ano depois, em junho de 2024, a Sema anunciou a assinatura de um pré-contrato com a Future Climate para iniciar a fase de consultas prévias, livres e informadas junto às comunidades, nos termos da Convenção 169 da OIT. Mas essas consultas, na verdade, são sobre a implementação das iniciativas de geração de créditos de carbono. Os acordos prévios foram feitos sem consulta às comunidades. Ou seja, para os ribeirinhos, o processo já começou de forma nebulosa.

“Quando vem uma decisão dessa para dentro de uma reserva, os nossos governantes já decidiram sem nos consultar. É muito investimento na nossa Amazônia, mas não lembram que aqui existe gente, que no Amazonas tem também o ribeirinho”, observa Marlene. De acordo com o edital, as empresas só precisam comprovar a realização das consultas na última fase do processo, após o envio das propostas e a aprovação.